Uma conversa sobre literatura produzida por pessoas negras no Espírito Santo e literatura afro-brasileira: Crespidão tipográfica na barbearia rua d’África, de Wagner Silva Gomes.

14/12/2023

Por: Jerson Oliveira Mendes Junior e Igor Roberto Ahnert

Em linhas gerais, a literatura produzida no Espírito Santo, segundo o crítico literário Francisco Aurélio Ribeiro (1996), sempre esteve à margem do que era produzido nacionalmente. Questões geopolíticas, desde o Brasil colônia a atualidade, apresentaram-se (e ainda se apresentam) como o fator desta invisibilidade do que culturalmente é produzido no estado (Ribeiro, 1996; Cei e Ahnert, 2023).

Válido ressaltar que se neste cenário branco-referenciado a produção cultural capixaba ainda encontra suas barreiras diante do palco nacional, ocupando esta tão chamada "marginalidade periférica" (Ribeiro, 1996), o fazer cultural – e aqui destaca-se a modalidade literária – produzido por pessoas negras é potencialmente (e intencionalmente) ofuscado quando considerados as práticas racistas expressas, institucionais e estruturais de um país que, num passado recente, soergueu os pilares da sociedade atual sobre os corpos de pessoas escravizadas.

O pesquisador e crítico literário Eduardo Duarte (2014), referência basilar do quesito literatura afro-brasileira (ou negro-brasileira), aponta o quão recente e problemática se deu a representação das pessoas negras na arte literária nacional, as quais, inseridas nas produções literárias por plumas empunhadas por mãos brancas, recebiam toda a "sorte" de estereótipos depreciativos, deslegitimantes de suas habilidades e faculdades mentais, deslocados de seus contextos culturais e simbólicos, desumanizadas, hipersexualizadas, ou seja, estereótipos racistas...

Duarte (2014) demonstra também a tentativa e esforço dos corajosos e poucos negros literatos – em virtude da estrutura sociopolítica racista - que se empenharam em ir na contramão destes lastimáveis estereótipos, seja construindo personagens racializadas por uma perspectiva mais positiva em sua humanidade, seja pela forte representação da existência para além da condição cativa de seus pares. Cabem destaques os precursores Domingos Caldas Barbosa, Luís Gama, Maria Firmina dos Reis, bem como outros negros de importante peso no cânone nacional como Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto (Duarte, 2014).

Circunscrevendo a realidade do Espírito Santo, a pesquisa realizada por Ribeiro (1995) aponta que a produção literária do negro capixaba parece ter seguido a mesma "cartilha" em relação à posição do negro do cenário literário nacional. Segundo o crítico, a presença do negro na literatura do Espírito Santo foi também pontuada tardiamente por homens brancos, bem como a escrita de pessoas negras só pode ser evidenciada no estado a partir dos anos 80 do século XX (Ribeiro, 1995).

É a partir deste florescer da produção escrita do negro capixaba que surge, na contemporaneidade, especificamente na zona metropolitana da grande Vitória, o escritor Wagner Silva Gomes.

Wagner Silva Gomes nasceu em 30 de novembro de 1987 e foi criado na periferia do município de Cariacica-ES, num lugar conhecido como Mangue Seco. Graduado (2014) e mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES (2022), pós-graduado em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Faculdade Estácio de Sá (2018), atualmente o jovem escritor trabalha como professor na rede municipal de Vitória e como educador social.

Wagner Gomes caminha por diferentes gêneros literários em sua produção que até o momento compreende: 03 romances - Classe Média Baixa (Pedregulho, 2014), Nix: microfone por tubos de ensaio (Pedregulho, 2018) e Qual é o esquema da parada (Pedregulho, 2020); 02 livros de poemas - Crespidão tipográfica na barbearia rua d'África (Triluna, 2022) e Moço Velho ou Um Areal do Belo (Amazon KDP, 2020); 01 livro infantil - Coroa para três rainhas (Amazon KDP, 2020); 01 biografia - Mudando de conversa com Papo Furado (Pedregulho, 2022) – e sua publicação mais recente é um texto dramático intitulado O Match Point de Nola Rice (2023).

O escritor revela ser conduzido por diversas influências artísticas de múltiplas autorias que vão desde celebridades do cenário musical e literário nacional e internacional, como de pessoas que impactaram positivamente sua formação acadêmica. Para compreendermos melhor a dimensão de seu fazer literário a entrevista a seguir aponta significantes características neste quesito, focando especificamente em seu livro de poemas Crespidão tipográfica na barbearia rua d'África (Triluna, 2022).

Entrevistadores: Wagner, em suas comunicações sobre seu fazer literário você aponta que se inspira na negritude e na vivência periférica, bem como do quanto sua vida influencia sua escrita e vice-versa. Para além de suas vivências – e não vejo nada mais legítimo que isso -, quais seriam os artistas, pensadores ou pessoas negras do seu convívio que influenciaram e influenciam sua escrita?

Wagner Gomes: O Jorge Nascimento, professor da UFES, é alguém próximo que tive contato primeiro o vendo pelos corredores da universidade e depois o ouvi falar em uma palestra sobre rap. Suas pesquisas, tanto nessa área como em literatura periférica, me ajudaram muito a trilhar o meu caminho. É um escritor e pesquisador com quem tenho afinidades estética, política e social.

O Alexandre Jairo Moraes, professor aposentado da UFES, é outro com que me identifiquei desde que o conheci. Foi meu professor na graduação e desde então trocamos ideias. É admirável a forma com a qual ele usa de memórias afetivas para simplificar e problematizar conceitos filosóficos, psicanalíticos e análises literárias. Pra ele a poesia é a base de tudo e todas as artes interagem continuamente. Isso está no desafio de escrever. Também penso assim.

A Suely Bispo, atriz, escritora, agente cultural, é uma pessoa que conheci nos corredores da UFES e que logo de início me impressionou pela luz que irradia na maneira de falar, gesticular e no amor que tem pela poesia. Assisti a sua defesa de dissertação cuja pesquisa era sobre o poeta Solano Trindade. Desde então trocamos ideias e cruzamos caminhos poéticos e ancestrais. A poesia pra ela é corporal e as coisas da vida e para além dela constituem o corpo da palavra. Adoro essa maneira dela poetizar e atuar.

Convivi com a pessoa da Jurema Oliveira (saudosa!) lendo os seus textos, ouvindo as suas aulas, percebendo os seus gestos e o seu jeito, e a considero fundamental para que eu me aprofundasse nas questões que envolvem a minha negritude ancestral.

Emmanuel 7 Linhas, Janio Silva, Marcéu Rosário, John Conceito, Maxwell dos Santos, são artistas e pensadores periféricos que estão sempre causando. Como grandes artistas são como os moleques que na minha infância eu ficava sabendo que estavam fazendo algo notável na outra rua e ia logo ver. Podia ser uma grande vitória de bolinha (pelando todo o mundo), uma grande vitória no fliperama (tirando todo o mundo), uma grande vitória no futebol (ganhando todos os times), uma briga (bateu em guri tido como mais forte) etc. Se não desse tempo de presenciar eu curtia pelo menos ouvir os comentários (risos). Não sei se me acompanham igualmente, mas como um deles sempre nos cruzamos, e é certo que vez ou outra ouvem falar de mim (risos).

Entrevistadores: Em um país marcado pelo mito da "democracia racial", você desde muito jovem já se reconhecia como pessoa negra? Digo isso não apenas tomando como parâmetro a cor da pele, mas no sentido de consciência e de referenciais. Sua família sempre possuiu e reforçou essa questão identitária em ti?

Wagner Gomes: Na favela os produtos culturais e as práticas culturais que a gente vivencia são carregados de negritude. Samba, pagode, funk, futebol, capoeira, Michael Jordan, foram as referências que moldaram o meu jeito de ser e de perceber o mundo. Meus pais sempre destacaram o racismo e os preconceitos implicados em nossa cor preta. Sair com identidade (RG) pra me identificar caso tomasse batida da polícia era um alerta sempre dado. Pedir para que eu cortasse o cabelo sempre que começasse a ficar alto era uma forma de mostrar que o cabelo crespo não é bem aceito. Como eles não eram leitores dos autores que são referências de negritude e nem se engajaram propriamente em um movimento de resistência negra, as formas de autoestima eram mais ligadas ao orgulho de ser da periferia e ao orgulho de vivenciar relações com a comunidade e com os expoentes da cultura popular. Embates de resistência negra eu aprendi ouvindo as músicas que os meus pais ouviam: Jorge Aragão ("podemos sorrir, nada mais nos impede/ Não dá pra fugir dessa coisa de pele"), Martinho da Vila ("quando eu vejo um negro sambando/ Eu visualizo um meu ancestral/ batucando no seu jongo/ e fazendo macumba no bambuzal/ namorando a sinhazinha/ no meio do cafezal") e tantos outros artistas negros. E sempre que surgia uma situação explícita ou subentendida de racismo ou preconceito prático meus pais sempre se posicionaram. Quando eu era criança minha mãe foi à escola esculhambar uma professora que me tratou com racismo segundo o que relatei pra ela (não lembro). Se surgisse numa roda de pessoas da comunidade, por exemplo, a frase "está um fedor de preto", minha mãe discutia abertamente que os pretos são limpos e que fedor é de quem não toma banho, e esculhambava a pessoa de racista. Recentemente ela levou um calçado pra consertar em um sapateiro miscigenado que falou alguma coisa sobre preto não ter nada que ser vaidoso e ela esculhambou o sapateiro falando que preto tem que ter autoestima e ser o que quiser (e perguntou a ele se ele era branco – risos). Desde então não requenta mais esse sapateiro. Ao contrário de mim que ainda vou nele por ser muito bom (risos).

Entrevistadores: Focando na sua produção poética Crespidão tipográfica na barbearia rua d'África (2022), por que a obra recebeu este nome?

Wagner Gomes: É uma metáfora para tipos de corte de cabelo afro. A barbearia é brasileira e a influência é direta da África. As periferias estão cheias delas. Essa estética reflete a autoestima atual das pessoas negras e como os movimentos de negritude influenciam comportamentos sociais. Então eu escrevi um livro que poetizasse isso.

Entrevistadores: É possível perceber ao longo desta obra que ela possui uma organização de versos bastante peculiar. Poderia falar um pouco sobre isso?

Wagner Gomes: É uma poética de linhas curtas ritmadas e rimadas criando uma batida sonora que materializa o sentido das palavras. Ao mesmo tempo eu levei para dentro dessa estética a meditação dos versos do haicai, potencializando a reflexão. Assim, alternei poemas longos que são como os degraus curtos das escadas da favela com haicais que são como aqueles degraus maiores que dão uma base pro descanso, saindo um pouco do ritmo e do fôlego dos degraus curtos. São caminhos para se chegar à barbearia que também são a barbearia (risos).

Entrevistadores: Não sei se foi impressão, mas o livro parece ser dividido em duas partes. Embora seja o poemário todo envolto na temática da negritude urbana periférica, me aparentou que a primeira parte caminha por uma diversidade de temas enquanto a segunda parece ter focado em uma "puxada" mais política no sentido de denúncia e insatisfação. Como você vê essa percepção?

Wagner Gomes: Não tinha notado (não foi proposital). Agora que você falou faz sentido (risos). Tem a ver com estar na periferia e vivenciar a diversidade ali presente (e estar presente nela também é sair dela, estando fora). Por outro lado, as reivindicações, os protestos, devem atingir os alvos, que são instituições localizadas em bairros nobres e em centros, e essas ações dependem também da classe trabalhadora de fora da periferia e que conhece bem as articulações trabalhistas nesses bairros.

Entrevistadores: Culturalmente diz-se que genitores não podem ter seus filhos favoritos (risos). Mas deste poemário, qual poesia você gosta mais?

Wagner Gomes: É o haicai "Tem halls na Fátima", porque é o que me veio de imediato à mente e por ser literalmente aquele degrau de base estendida que esfria o clima da periferia. A Fátima é a minha mãe, que tinha uma vendinha onde vendia sorvete, biscoito e uma diversidade de guloseimas; dentre elas a bala halls. Durante anos ajudei a tomar conta desse comércio. Ali aprendi a lidar com gente de toda a periferia que ora ou outra parava nem que fosse só pra sentar e conversar. Molhávamos a rua pra evitar que entrasse muita poeira na vendinha, que recebia o nome de Fátima (diziam "compra na Fátima", "vai na Fátima", mesmo que eu estivesse tomando conta (riso)).

Entrevistadores: Sem querer forçar spoiler, mas a título de curiosidade... Já tem em mente qual será o próximo livro? Prosa ou poesia? Superficialmente arriscaria dizer sobre qual temática esta produção contemplaria?

Wagner Gomes: Tenho livro de poesia e de prosa que ainda não publiquei. E atualmente eu estou escrevendo um livro de contos. São histórias que têm por base o que ouvi de populares. O intuito é que cada conto seja uma síntese estético-política que parte da ancestralidade africana para lidar com outras ancestralidades em diálogos que possibilitem a convivência entre elas de acordo com o que a minha subjetividade reivindicar, por exigência dos objetos, do tema, e do contexto acionado.

Diante do que fora exposto pelo escritor na entrevista, é possível compreender a produção literária de Wagner Gomes como um fazer literário marginal, visto que - como apontado por Rejane Oliveira (2011) - neste tipo de abordagem literária percebe-se o engajamento às questões raciais e sociais, bem como da autoria apresentar um discurso que subverte a lógica da escrita hegemônica, caminhando para longe do senso/sentido estético literário ocidental - branco/euro-referenciado - e alheio à realidade da maioria da população.

Faz-se necessário, também, demarcar que a literatura produzida por Wagner Gomes é marginal por ser, sobretudo, uma  literatura afro-brasileira, uma vez que não surge despretensiosamente da experiência isolada de uma pessoa racializada da periferia, mas engloba conscientemente as dores coletivas consequentes do processo da escravidão colonial – escrevivência. Nesse sentido, percebe-se claramente, pelas próprias alegações do escritor e a partir do livro de poemas discutido, a articulação dos elementos (autoria, temática, ponto de vista, linguagem e público) que, segundo Eduardo Duarte (2014), são a essência do que se compreende como literatura afro-brasileira.

Referências:

AHNERT, Igor; CEI, Vitor. A literatura capixaba: os leitores nas perspectivas de escritores contemporâneos do Espírito Santo. In: NATHANAILIDIS, Andressa Z.; SODRÉ, Paulo R.; AMARAL, Sérgio da F.; CEI, Vitor (org). Bravos/as companheiros/as e fantasmas 10: estudos críticos sobre o/a autor/a capixaba. Vitória: Cândida, 2023. p. 72-95. Disponível em: https://blog.ufes.br/neples/?page_id=36. Acesso em dez 2023.

DUARTE, Eduardo de Assis. Faces do negro na literatura brasileira. Literafro, Belo Horizonte, 2014. Disponível em: https://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/1676-eduardo-de-assis-duarte-faces-do-negro-na-literatura-brasileira. Acesso em dez. 2023

OLIVEIRA, Rejane Pivetta. Literatura marginal: questionamentos a teoria literaria. Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 -Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Disponivel em: < https://silo.tips/download/literatura-marginal-questionamentos-a-teoria-literaria. Acesso em dez. 2023.

RIBEIRO, Francisco Aurélio. A visão do negro na literatura do Espírito Santo. Morro do moreno, 1995. Disponível em:https://www.morrodomoreno.com.br/materias/a-visao-do-negro-na-literatura-do-espirito-santo-por-francisco-aurelio-ribeiro.html. Acesso em nov. 2023

RIBEIRO, Francisco Aurélio. A literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica. Tertúlia, 1996. Disponível em: https://www.tertuliacapixaba.com.br/paraler/a_literatura_do_espirito_santo_uma_marginalidade_perif%C3%A9rica.html. Acesso em dez. 2023.

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