A vida e obra de Miguel Marvilla

11/07/2023

"Eu naufrago nos sargaços de um mar de pensamentos há muito começados e esquecidos."


Miguel Marvilla

Biografia

Miguel Arcanjo Marvilla nasceu em Marataízes, em 1959, passando a morar desde muito novo no Orfanato Cristo Rei, em Vitória, devido à separação dos pais. No orfanato, era escalado para ler o evangelho nas missas e encontrou o gosto pela leitura na biblioteca da casa, onde se encantou com a literatura de histórias em quadrinhos, segundo conta sua biógrafa Joana D'Arc Herkenhoff. Muito precocemente começou a escrever poemas e, ainda durante a adolescência, teve contato com a obra de grandes escritores, incluindo seu favorito, Gabriel García Márquez. Ainda em sua juventude, conheceu renomados escritores capixabas, como Oscar Gama Filho, Renato Pacheco, Reinaldo dos Santos Neves, José Augusto Carvalho, Marcos Tavares, Fernando Achiamé e Luiz Busato, quando o "Grupo Letra" foi criado.

Com origem humilde, Miguel Marvilla formou-se em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e cursou mestrado em História. Ele se tornou editor da revista "Você", publicada pela UFES, estabelecendo novos padrões de qualidade para a produção literária capixaba.

A qualidade e singularidade de sua escrita chamaram a atenção de escritores renomados, como Carlos Drummond de Andrade, que lhe enviou cartas de felicitações por seu primeiro livro. Miguel Marvilla recebeu prêmios literários estaduais e nacionais, além de uma menção honrosa no "III Concurso Literário Internacional da Áustria", em 1996. Em 1994, conquistou o primeiro lugar no "Concurso de Poesia" organizado pelo Sindicato dos Bancários do Espírito Santo. Foi eleito, em 1991, já com vários livros publicados, para a cadeira de número 18 na Academia Espírito-Santense de Letras.

Fundador da editora Flor&Cultura, juntamente com Christoph Schneebeli, Miguel Marvilla revolucionou o cenário editorial capixaba, elevando a qualidade dos livros produzidos. Antes de sua atuação, os livros capixabas eram facilmente identificados pela baixa qualidade dos papéis, diagramações pouco atrativas e falta de cuidado estético.

A obra de Miguel Marvilla apresenta intertextualidades e diálogos com escritores renomados, como Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Ele atingiu um estágio de grande maturidade em seu livro Dédalo (1996), resgatando experimentos formais, humor e habilidade na manipulação de diversos ritmos e métricas.

Além de sua carreira como escritor, Miguel Marvilla também se dedicou à fotografia, ao teatro (como diretor e ator) e à edição. Iniciou sua trajetória como editor com a coleção Palavras da cidade, publicada nos primeiros anos da década de 90 pela Prefeitura de Vitória. Em 1996, assumiu a edição da revista "Você", publicada pela Secretaria de Produção e Difusão Cultural da UFES.

Publicou versos e ensaios em diversas revistas e periódicos capixabas e nacionais. Em parceria com Maria Helena Teixeira de Siqueira, organizou a antologia Textos entre dois tempos (Flor&Cultura, 2000). Além disso, atuou como organizador e editor do livro Crônicas Selecionadas (Flor&Cultura, 2000) de José Carlos Fonseca. Residiu seus últimos anos em Vitória, onde se dedicava à preparação das obras O Império Romano e a Divindade Celestial, uma análise da construção da imagem sagrada do imperador em Elogio a Constantino de Eusébio de Cesareia (século IV); Zoológico dos Sonhos, uma coletânea poética voltada para crianças (mesmo aquelas já crescidas); e Beleléu e Arredores (romance), próximos lançamentos de sua editora, Flor&Cultura.

Sobre Os mortos estão no living (1988), o próprio autor chegou a criar um blog para publicar e discutir a obra, que havia sido indicada para compor a bibliografia do vestibular da UFES de 2007 a 2009.

Infelizmente, Miguel Marvilla faleceu aos 50 anos de idade, vítima de câncer, em 2009. Sua obra continua sendo valorizada e mantida viva por diversos artistas e escritores, como a atriz e escritora Suely Bispo, que criou a peça Um recital para Miguel Marvilla. Através dessa peça, Suely Bispo explora desde as brincadeiras poéticas do escritor até temas mais dramáticos, como o medo e a morte, com os quais Miguel Marvilla flertou ao longo de sua vida e enfrentamento da doença.

Sérgio Blank uma vez registrou a importância de reeditar a obra de Miguel Marvilla e chamar a atenção dos jovens escritores para a qualidade e singularidade de sua escrita.

Miguel Marvilla deixou um legado marcante na literatura do Espírito Santo, sendo reconhecido como um dos mais destacados escritores de poesia do estado. Sua influência como escritor e editor foi fundamental para elevar a qualidade e o padrão dos livros produzidos aqui, deixando um impacto duradouro na cultura e no pensamento criativo da região.

Autobiografia

Os mortos estão no living (1988) foi utilizado pela UFES em seu vestibular, nos anos de 2007 até 2009. Essa adoção fez com que Miguel criasse uma página para o livro e registrasse uma pequena autobiografia. A autobiografia em questão é a seguinte:

Poeta usado, safra 1959, ainda em razoável estado de conservação. Proprietário de quase nada, a não ser uma penca de cedês, devedês e livros, todos lidos, vistos, ouvidos, não necessariamente nessa ordem, e de uma alma ampla e arejada, com vista apenas para coisas boas. Mestre em História Antiga pela UFES, por puro prazer. Autor de um bocado de livros de poesia: "Dédalo", "Sonetos da despaixão", "Tanto amar", "Lição de labirinto", por exemplo. Não se culpe por não conhecê-los: foram publicados quando você ainda era criança — se bem que Shakespeare foi publicado bem antes e você conhece... "Os mortos estão no living", é meu único, até agora, livro de contos e foi adotado pela UFES para os vestibulares de 2007-2009, razão por que estamos aqui, você e eu. Ainda neste 2007 suarento, publicarei "O Império Romano e o Reino dos Céus" — a criação da imagem sagrada do imperador em "De laudibus Constantini", de Eusébio de Cesareia (século IV), em que discuto a formação da "basileia" em termos essencialmente cristãos (parece grego? É grego — o inglês do século IV), "Beleléu e adjacências" (romance) e "Zoo-ilógico", poesia para crianças (inclusive as que já cresceram).

Obras:

"De amor à politica" (De parceria com Oscar Gama Filho), Vitória, 1979;

"A fuga e o vento", Vitória, 1980;

"Exercício do corpo", Vitória, 1980;

"Dédalo" ( poesias), Flor&Cultura, Vitória, 1996;

"Sonetos da despaixão"' ( poesias) - Apresentação de Adilson Villaça, Flor&Cultura, Vitória,1996;

"Tanto amar"', Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Vitória, Vitória, 1991;

"Lição de Labirinto" (Prêmio Geraldo Costa Alves), Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, Vitória, 1989;

"Os mortos estão no living" ( contos), 1988;

"Nelson Abel de Almeida: um homem e o espírito de um lugar" (texto vencedor do Concurso "Nelson Abel de Almeida: o homem) Vitória, 1998;

"Jardins de Vitória" (cadernos de meio ambienta da PMV), 1998;

"Luísa, Juliana, Sigmund" (ensaios), 2001;

"Estranhos companheiros" (inédito).

Textos selecionados:

De Dédalo (1996), os seguintes poemas:

A minha alma, partida

A minha alma, partida, vai por uma
alameda de sombras inclementes.
Eu a vejo, por vezes, na penumbra
de um soslaio – eu excessivamente este

que assim sou. Nos baldios de mim 'stando
um granítico silêncio a descoberto
e um comboio de angústias, eu naufrago
nos sargaços de um mar de pensamentos

há muito começados e esquecidos.
A minha alma, porém, me abandonando
ao gerúndio das coisas sem recurso,

a minha alma, assim, segue seu curso
no rente dos escombros de lembranças
inventadas, ao largo de um homem ido. (MARVILLA, 1996, p. 13)

Quem vê do amor

Quem vê do amor só a mítica textura
e deixa aos deuses serem responsáveis
por da boca bobagens obscuras
alçarem vôo rumo a um céu de salves
e queridas, rainhas, aves, aves;

quem pensa no amor como num rio
em que toda gente, à bolina,
há de trafegar, reta e segura,
como num quintal as estações
e a certeza das frutas que virão;

conhece apenas dele poucas quadras,
pois amor, além disso, é um inferno,
arrabaldes sem fim de areia e sol,
galerias de dunas intrincadas,
aonde vai-se com só a própria sombra
e o resto na entrada se abandona. (MARVILLA, 1996, p. 113)

De Os mortos estão no living (2006), os seguintes contos:

Três histórias

1. A noiva passa, de carro, como para um enterro.
2. Alguns moleques atêm-se a atear fogo a velhas caixas de papelão. Um cão sem dono acompanha atentamente o movimento das crianças.
3. A lua
1. É uma noiva feia, de seus vinte e tantos anos, e gestos enfadonhos. O motorista - talvez o pai da moça -, circunspecto, não repara que ela prefere ser enterrada a se casar. Mas isso não importa agora, os convivas já estão na igreja, e o padre.
2. O cão, timidamente, late um pouco de amizade. Um dos moleques traz mais papel e restos de uma tábua para alimentar o fogo. Logo, logo, estarão aquecidos nesta seminoite que congela até mesmo os olhares.
3. se
1. O carro pára no sinal vermelho. O pai - se é o pai - não quer se arriscar a ultrapassá-lo, com medo de que algo aconteça à filha - se é a filha - no dia do seu casamento. Seguirá todas as normas de trânsito, tomará todas as precauções, para que ela chegue impune ao altar.
2. Mais dois moleques se aproximam, tiritando de frio, da fogueira. O cão sem dono abana o rabo e lambe afetuosamente o braço de um deles, que o enxota, rude. O vento ruge.
3. construindo,
1. A noiva só deseja saltar do carro e sair correndo (para onde?), mas ele recomeça sua marcha, irrevogável.
2. São mais que várias em idade, sexo e solidão, as crianças em redor da fogueira e o cão, sedentos de carinho. O calor do fogo supre, fogazmente, a falta de abraços. Olham-se de vez em quando e tornam ao seu mutismo, unidas apenas pela luz da madeira e dos papéis que se queimam.
3. pausada,
1. A noiva reza por um defeito mecânico qualquer que retarde seu sacrifício. Pai e filha - já são pai e filha - estão ligados unicamente pelo rugido do motor e do tráfego. Nunca mais, nunca mais será antes, para tomar a decisão acertada.
2. Um dos moleques, aquecido, desata uma cantiga de infância. Outros dois tamborilam os dedos magros e sujos sobre latas vazias de leite Ninho, enquanto os restantes marcam o campasso da música com palmas. O cão se enrosca, gratificado pela melodia e pelo calor, em seu próprio corpo.
3. simples,
1. O automóvel contorna a praça e estaciona em frente à igreja. Uma multidão se aglomera em volta dele, comentando o vestido e a beleza da noiva. Ninguém atenta para a lágrima dela, que abre caminho na maquilagem.
2. Um pedaço de pão passa, multiplicando-se, de mão em mão, entre os meninos, irmanando-os, calando momentaneamente suas diversas fomes. Um deles acaricia o cão e o enrola em jornais de notícias remotas. O cão, satisfeito, sussurra um agradecimento.
3. lentamente,
1. A noiva - Mendelssohn ao fundo -, empunhada pelo pai circunspecto, adentra a igreja e é entregue ao seu algoz. Nada lhe resta a fazer senão calar-se e acomodar-se ao destino que lhe reservaram. Os convidados sorriem em leque, felizes.
2. As crianças, com um pouco de querosene, ateiam fogo ao cão, que sai correndo, granindo, ilustrando a noite com seu desespero. Os moleques riem, felizes.
3. Lua. (MARVILLA, 2006, p 12-15)

Os mortos estão no living

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo
Nenhum tinha rosto. […]
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram os rostos iluminados.

- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, "Comunhão"

I

Havia sapos coaxando na memória, onde os mortos passeavam, impunes, suas sombras.

Não conseguia precisar exatamente quando começara a crescer, por isso o período anterior ao seu crescimento estivera recostado por tanto tempo entre o umbral da vagina materna, as roupas de boneca, a primeira comunhão, a primeira menstruação. Agora era adulta e, adulta, era um feto consumido. Foi num espaço vago dessas abstrações que, lentamente, o coaxar dos sapos se instalou, sem que ela pudesse evitar, e um morto pôde consolidar-se em suas lembranças.

De início, assustou-se e ficou tão lívida quanto lhe era possível comprimir o sangue para os pés. Mas, em seguida, reconheceu o cadáver sorridentes do pai, depois, o da mãe, do avô, dos tios, tias, primos, o irmão assassinado, e, tranqüilizada, distraiu-se vendo, com saudades, o filme dos mortos de toda a sua genealogia.

E eram tantos os antepassados desaparecidos e tanta a emoção singular de revê-los com tamanha nitidez que ela quase não ia percebendo uma personagem de que não se lembrava, embora tivesse algo de vagamente familiar. Era uma menina, cuja imagem já começava a se dissipar no fotograma desbotado pelos anos. Por muito, porém, que a observasse, não a encontrava entre suas recordações, por mais e mais que as vasculhasse.

Parou a projeção do filme, sentindo-se confusa. Temeu adultérios, coisas escondidas, segredos perdidos resvalados, de repente, sem querer, do escuro em que jaziam para a luz. E aquela garotinha ali, nem um sorriso (sorrir era sempre uma pista), estagnada, fitando-a, pouco à vontade, de um passado sem vestígios.

Intrigada, ela ficou ainda alguns instantes coagulada na atmosfera da sala, tentando dar com o porquê da visita súbita e silenciosa de toda a sua linhagem, desde o fundador da estirpe até aquela criança enigmática, mas não teve oportunidade de pensar em mais nada, os filhos já voltavam da escola, precisava preparar-lhes banho-lanche, como fora esquecer-se disso?

II

Portando seu melhor sorriso, antes que os filhos tocassem a campainha, abriu a porta, esperando uma tarde como tantas, e ficou boquiaberta: eles não a beijaram e, pior, passaram através dela, como nos truques de atravessar paredes dos mágicos dos circos, sem vê-la, indo procurá-la escada acima, seguidos de um séquito de pequenos colegas.

Continuava estupefata, sem compreender o acontecido, quando ouviu os gritos do filho mais velho. Correu o mais que pôde, animal em defesa de cria atacada, tropeçando nos móveis, esbarrando nas paredes, em direção de onde ele estava, mas ele já voltava pelo corredor, novamente não a viu e tornou a passar pelo corpo dela, antes que a irmã menor e os colegiais que trouxeram fizessem o mesmo, chorando e chamando pelos vizinhos.

Somente quando conseguiu se libertar da surpresa e tentou ir atrás deles foi que ela descobriu, num relance, que não ultrapassaria mais a soleira da casa e o que significava a visita dos mortos da família.

Com o desespero aumentando, deu meia-volta e rumou para o seu quarto, temendo o que iria constatar assim que chegasse lá. O que viu, e o que seus meninos viram, era ela mesma, muito branca, quase incolor, integrada em definitivo à paisagem dos lençóis que trocara pela manhã.

Nesse instante, observando o próprio cadáver, alheia à carne, tornou a ver os parentes extintos, à exceção da menina desconhecida que a intrigara da primeira vez. Aí, carregando sobre si a confirmação de seu novo estado, ela se arrastou lentamente até onde estava um velho baú, esquecido no sótão desde o enterro do último parente. No fundo dele, envolto em grossa camada de cupins, encontrou um igualmente velho álbum e, sem ligar para os insetos e para a poeira que desprendeu, saltando agitadamente os retratos em vários ângulos e tamanhos de pais, avós, irmãos e amigos de outra era, defrontou-se, enfim, com o que procurava: a fotografia que agora estava ausente do filme de seus mortos. Então compreendeu todos os acontecimentos do dia, o universo espraiado diante dela: era seu o nome escrito com tímida caligrafia primária nas costas da foto.

E soube assim que também fazia parte do filme, porque já completara a memória de todas as coisas, presentes e passadas.

III

Quando os filhos voltaram, trazendo lágrimas e uma multidão heterogênea de vizinhos e curiosos, ela nem pensou em chamá-los. Apenas ajeitou, com gesto imperceptível e triste, os cabelos deles, beijou a ambos carinhosamente e, ainda sem que notassem, sentou-se à beira da cama onde estava seu corpo e enjaulou-se em si mesma, acomodada em sua condição de morta até o dia em que tiver de levantar-se e passar o filme dos cadáveres da família na memória de suas crianças. (MARVILLA, 2006, p. 16-20)

Entrevista na revista "Fernão"

Em 2019, ano que completou dez anos da morte de Miguel Marvilla, a revista "Fernão" do Neples - Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, acatou a sugestão de Wilberth Salgueiro e decidiu por homenagear o poeta de Marataízes com a republicação de seu depoimento sobre sua produção poética, para o seminário organizado por Salgueiro nos anos de 1990, na UFES, e publicado na revista "Você".

À seguir, compilado de passagens do depoimento do poeta para a revista:

Devo confessar que minhas leituras iniciais já me conduziam ao caminho que agora trilho com razoáveis serenidade e segurança (notaram a concordância, que bonita?). Antes de desaguar, impávido colosso, nos braços de Shakespeare, Bernard Shaw e Joyce (No original! No original! —graças ao Mário); dos românticos ingleses (graças à Aurélia) e de Edward Albee, Arthur Miller e Tennessee Williams (graças ao Carrozzo), pois, antes disso, eu já estava impregnado de Umberto Eco, Fernando Pessoa, Camões, Günter Grass, Machado de Assis, José J. Veiga, Drummond, Gilberto Mendonça Teles (o poeta) e arredores. (MARVILLA, 2020, p. 290).

E onde é que entra a tão ansiosamente aguardada parte de "construção" do poeta? Aí é que está. Não entra. Deixo isso aos meus biógrafos, se houverem (o plural foi de propósito, só pra chatear). Tomara que nenhum deles me pegue vivo. Eu sei lá do poeta, mas lembro bem de um professor de Geografia [...] (MARVILLA, 2020, p. 292).

[...] Um dia, o Ozílio Rubim (é o nome do professor), enquanto eu olhava distraído para o meu futuro pela janela da casa dele na avenida Santo Antônio, me joga nos braços um livro e diz: "Lê. Você vai gostar".Que livro? Nada menos que Cem anos de solidão. Ele jogou uma obra-prima da literatura aos pés dos meus 14 anos. Te devo essa, Ozílio. Este talvez tenha sido o acontecimento mais importante da minha adolescência [...] (MARVILLA, 2020, p. 293).

Enquanto Vitória nos olhava com espanto, sem entender nada (às vezes nem nós mesmos entendíamos, eu acho que), colhíamos um elogiozinho do Drummond aqui, de Jorge Amado ali (mas esse é suspeito), do Gilberto Mendonça Teles adiante, e sentávamos praça com Reinaldo Santos Neves, José Augusto Carvalho, Renato Pacheco, Marcos Tavares e Luiz Busatto no Grupo e na "Revista Letra" (sem esquecer do Luiz Guilherme Santos Neves, o membro de fora do Grupo) (MARVILLA, 2020, p. 295).

Assim, como quem não quer nada, fui-me construindo, sem léu nem chapéu, este que excessivamente assim sou, já li isso em algum lugar. Deve ter sido em Dédalo, meu último livro. Ah, sim. Os meus livros. Comecei plagiando e declamando uns poemas de Kipling no programa policial Ronda da Cidade, apresentado pelo então radialista Gérson Camata, (MARVILLA, 2020, p. 296) vocês sabem, o marido da deputada Rita Camata (parece que ele também foi eleito pra alguma coisa aí), o qual, por não entender lhufas de literatura, nem desconfiava de que eu roubava aqueles poemas do Tesouro da Juventude, que lia aos borbotões na Biblioteca Pública da PMV, em tardes de nunca mais. Camata não entendia de literatura, mas logo, logo, arrumou um jeitinho de ficar rico, enquanto eu continuo ralando (e tendo dúvidas sobre se sei algo do assunto) (MARVILLA, 2020, p. 297).

Depois disso, escrevi meus próprios poemas. Três livros vieram em mimeógrafo: De amor à política (o livro, acreditem, é bem melhor que o título), com Oscar Gama Filho; A fuga e o vento e Exercício do corpo, que uma garota uma vez me perguntou se se tratava de um manual de Educação Física (MARVILLA, 2020, p. 297).

[...] O Reinaldo, pra meu azar, era editor da FCAA/UFES e se recusava terminantemente a publicar os amigos mais chegados, com medo de ser acusado de alguma espécie de sacanagem. De modo que precisei de uma menção honrosa em concurso para publicar Os mortos estão no living (contos) (MARVILLA, 2020, p. 298).

Para publicar os poemas de Lição de Labirinto, então, precisei vencer o concurso (MARVILLA, 2020, p. 299).

Então, que o espaço tá ficando curto, escrevi Tanto Amar, um livro com só 14 poemas falando sobre a paixão, meu tema de sempre favorito, que a Vera Viana, na Secretaria de Cultura da PMV, abençoada por Vítor Buaiz, publicou, junto com a CEF. Foi lançado em 91. Naquele ano, conheci uma mulher, ao redor da qual circulei, embevecido, apatetado, os próximos quase 5 anos, até que, em princípios de 96, o bom senso dela prevaleceu pela primeira vez e ela me deixou, o que me obrigou a voltar a escrever – para exorcizar meus fantasmas (pra me "imolar em público", disse o Adilson Vilaça) (MARVILLA, 2020, p. 299).

Ela me rendeu, ao menos isso, um livro: Sonetos da despaixão, que inaugurou, em julho, a minha editora, Flor&Cultura, logo seguido, em novembro, por Dédalo. A tal mulher? Dela nada mais sei nem me seja perguntado. Que a neve de Munique lhe seja leve. (MARVILLA, 2020, p. 300).

Programa Entrelinhas TVE (1980)

Por meio do acervo em VHS do Arquivo Público do Espírito Santo, o canal do YouTube Usinagem de Escritas conseguiu e publicou uma cópia do programa Entrelinhas, da TV Educativa do ES, veiculado na década de 1980. Essa edição do programa é dedicada a Miguel Marvilla e, além de uma entrevista concedida a Rubem Côgo, o programa conta com depoimentos de familiares e escritores acerca de Marvilla. São eles: Oscar Gama Filho; Ilza Del Pupo (então esposa de Miguel, na época do programa); Luiz Busatto; Deny Gomes; Francisco Grijó; Renato Pacheco.

Entrevista concedida a Rubem Côgo:

Rubem Côgo: A pergunta inevitável, Miguel, como você e a Literatura se cruzaram?

Miguel Marvilla: Eu fui pego de surpresa, na oitava série, com um poema do Drummond, "No meio do caminho" e achei que era capaz de produzir alguma coisa melhor do que o Drummond porque achei o poema horroroso. E até hoje eu não consegui chegar perto. Em princípio, eu plagiava todo mundo que aparecia, participava do Ronda da Cidade com os poemas plagiados de Kipling, um bocado de gente… tirava do tesouro da juventude, essas coisas.

R: Quer dizer que o primeiro contato foi com "uma pedra no meio do caminho"…

M: Foi uma pedra no sapato, era uma pedra no sapato até ontem.

R: Como é a importância do Drummond na sua poesia, no seu trabalho?

M: Eu acho que o Drummond tem uma importância fundamental, porque eu li quase tudo do Drummond e admiro o Drummond profundamente. Eu acho que foi talvez a morte que eu mais senti até hoje e vejo que até hoje eu não consegui me livrar do Drummond. Acho que todo poeta, todo escritor brasileiro, todo escritor que toma contato com Drummond acaba por tentar imitar o Drummond. Num certo período eu tentei, não consegui, é claro que eu não consegui, mas, a partir daí, você descobre um caminho próprio, uma linguagem própria, um ritmo próprio e parte para outro campo.

R: [Esse outro campo] Que também é uma mistura de outros autores. Que outros autores você leu nessa caminhada com pedras no meio do caminho?

M: É… falando em termos de poesia, eu li muito Drummond, li muito Manoel Bandeira, alguma coisa do João Cabral e principalmente o Camões. De Fernando Pessoa, Álvaro de Campos. São minhas leituras favoritas. Agora, é lógico que você mescla todas essas tendências, todas essas leituras para descobrir o seu ritmo próprio, para se livrar da sua pedra. E nisso aí você encontra outros autores, como García Márquez, como Saramago, que são os autores que eu realmente tenho fascínio absoluto por eles.

R: Você falou um pouco de ritmo. Falando de música, o que você gosta de ouvir?

M: Eu gosto de ouvir música erudita, eu tô numa fase em que pra parodiar um pouco o que o Luis Fernando Verissimo há pouco tempo na Playboy: eu to numa fase em que acho que ninguém precisa de ouvir mais nada além do Barroco, eu diria barroco de uma forma geral, ele falou barroco italiano, eu prefiro o Barroco geral.

R: Como que foi esse processo de chegar a publicar o primeiro livro?

M: Esse processo de produção do primeiro livro partiu da oficina de, aliás, de uma oficina não, de uma cooperativa de escritores que eu, Oscar, Gilson Soares, Coelho Sampaio, Marcos Tavares e Benilson Pereira, fundamos em 1978. […] E nessa cooperativa surgiu a ideia de que se fizesse a edição em mimeógrafa. Só que a ideia da cooperativa não era editar nada, a ideia da cooperativa, em princípio, era estudar Literatura até chegar um ponto em que a própria produção dos autores ali presentes exigisse uma publicação. Mas o Benilson Pereira, que, muito afoito, sempre muito afoito, e acho que a Literatura Capixaba vai ter essa dívida com ele, é… partiu imediatamente para publicar em mimeografia. Em 1978 mesmo, ele publicou um livro, não me lembro o título, e saiu vendendo de bar em bar. Isso chamou a atenção das pessoas que estavam nos bares, se sentavam nos bares e conversavam, de repente tinha alguém vendendo poesia. E era uma coisa diferente em Vitória, embora não fosse uma coisa original, era uma coisa diferente. Imediatamente, a seguir, eu e o Oscar lançamos o "Diário de amor à política".

R: E como você vê sua poesia hoje?

M: Eu vejo com muita suspeita. Cada vez que eu fico mais velho, eu suspeito mais de mim, eu acho que eu não me enquadro mais no esquema, cê fica mais de botar livro debaixo do braço e ir pro butiquim vender… hoje você quer mais ir pro butiquim pra conversar, pra comer pra beber, seja lá pro que for. Então eu suspeito cada vez mais de mim.

Depoimento de Oscar Gama Filho (Historiador/Escritor):

Miguel é muito mais que um escritor. Há muitas pessoas que escrevem, mas poucas são aquelas que têm uma alma de artista. Miguel é um artista, ele é um artista muito talentoso e, diríamos, multitalentoso. Miguel é um grande ator, é um ator que com algum conhecimento teórico poderia ser um dos melhores do teatro capixaba, é um cara que consegue tirar, de ouvido, músicas na flauta, no piano, ele é um escritor brilhante, um poeta realmente capaz de transmitir pro público sentimentos diversos, sentimentos por vezes contrastantes, por vezes paradoxais. Miguel, em suma, é um artista precioso, importante e que necessita de ser resgatado nesse momento. Nós precisamos estudar não só a obra de Miguel que vem sendo publicada pela Fundação Cinema Bell de Almeida, mas também os livros mimeografados, os textos que ele deixou espalhado por aí nesse momento. É um artista que merece, pelo seu potencial, pelo seu talento, ser valorizado, ser estudado e, assim, contribuir para elevação, para o aprofundamento da cultura capixaba.

Depoimento de Ilza Del Pupo (esposa de Miguel Marvilla):

Quero que ele continue escrevendo, publique muitos e muitos livros, porque isso, para ele, é vida, sabe? Eu acho que ele vive em função disso, né? Se faltar isso para ele, sabe, ele vai, sei lá, se um dia ele de repente não puder mais escrever, eu acho que ele vai se sentir, como é que eu diria… vazio, sabe.

Depoimento de Luiz Busatto (Professor de Letras/UFES e escritor):

Miguel Marvilla ocupa no Espírito Santo já o seu espaço. Ele escreveu quatro livros de poemas e um livro de contos, além disso ele tem o livro "Os mortos estão no living", que é uma compilação de contos, né. […] A arte poética é a arte de bem dizer e bem escrever, ora, Miguel contém essas qualidades. Ele tem uma economia verbal muito grande, uma força de imagens extraordinária e, sobretudo, ele possui a magia verbal, ele consegue encantar o leitor por aquilo que ele escreve, basta-se ler um livro ou os poemas que ele apresenta.

Depoimento de Deny Gomes (Poetisa):

Miguel Marvilla é uma pessoa que você não pode separar o poeta do homem, como você não pode separar a vida da expressão poética da vida. Miguel é um autor que se sai muito bem tanto na prosa, como na poesia. Ele se dedica ao experimentalismo, a uma linguagem extremamente sofisticada, elaborada, tendendo às vezes até para um hermetismo talvez excessivo. E, pode ser extremamente simples, né, claro, cristalino, meridiano. E aí disso que resulta o maior encanto daquilo que Miguel Marvilla escreve.

Depoimento de Francisco Grijó (Professor de Letras/UFES e escritor):

O Miguel é essencialmente poeta, porque a própria vida dele é poética, tá. Tudo o que o Miguel faz cheira a poesia, tá, se me permitem essa sinestesia, é claro. A prosa dele já é mais chegada pra poesia também, então é dizer, como eu prefiro trabalhar a prosa de uma maneira mais linear, e o Miguel não faz isso, porque o Miguel pensa em forma de poema, enquanto existem os que pensam em forma de prosa. Eu acho que a coisa passa mais ou menos por aí. Agora, enquanto poeta, eu realmente tiro o chapéu pro Miguel.

Depoimento de Renato Pacheco (Historiador e escritor):

Miguel Marvilla é um dos mais extraordinários criadores da Literatura Capixaba em todos os tempos. Poeta e prosador, a gente podia pensar naquele menino pobre de Marataízes, aquele maratimba de Itapemirim, jamais se tornaria o grande escritor que hoje ele é. Já tem uma obra, embora muito jovem, publicada de alto valor e apoiada por Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e outros grandes escritores brasileiros.

Sarau poético em homenagem ao escritor

Em 2014, a Prefeitura Municipal de Vitória publicou uma notícia em seu site a respeito de um sarau poético realizado em homenagem a Miguel Marvilla. O sarau foi organizado como parte integrante da programação de aniversário de 20 anos do projeto Viagem pela Literatura, da Biblioteca Municipal Adelpho Poli Monjardim e contou com a presença de escritores como Suely Bispo, Joana d'Arc Herkenhoff e Marcos Tavares.

A seguir, apresento a reportagem publicada no site da Prefeitura Municipal de Vitória, com fotos também lá publicadas.

Sarau poético faz homenagem ao escritor Miguel Marvilla e emociona público – Por Leo Vais, com edição de Matheus Thebaldi, Publicada em 19/09/2014, às 12h19. Prefeitura de Vitória.

"A poesia pede olhos e ouvidos. E foi o que aconteceu hoje (quinta) aqui no auditório do Arquivo Público". Foi com essas palavras que a escritora Joana d'Arc Herkenhoff, que é autora de um estudo biográfico sobre o escritor Miguel Marvilla para um livro da coleção Roberto Almada, resumiu a encenação da atriz e escritora Suely Bispo, em parceria com o músico e professor de Violão da Escola Técnica de Teatro, Dança e Música Fafi Norberto Fyhn e com projeções de Fabrício Fernandes, sobre a vida e obra de Marvilla.

A apresentação aconteceu no auditório do Arquivo Público Estadual, nesta última quinta-feira (18), e fez parte da atividade Sarau Poético, uma das ações do projeto Viagem pela Literatura, divulgando e aproximando a literatura dos cidadãos por meio da música e da declamação de poemas. "É uma honra para o Arquivo Público receber todos vocês nesse espaço, que é do povo. Viva a poesia, viva a literatura, viva a vida!", agradeceu o diretor geral do espaço, Agostinho Lázaro.

Bastante emocionada, Suely afirmou que foi a partir da preparação para esse trabalho para o Viagem pela Literatura que ela se aprofundou na obra de Marvilla. "Fui me apaixonando pela obra do Marvilla. Estudamos na mesma época na UFES, mas nunca fomos próximos. Sempre tive uma admiração por ele de longa data. É bom resgatar a história e a obra desse poeta maravilhoso. Ele é um dos melhores poetas do Espírito Santo, do Brasil e do mundo".

Família

A apresentação contou com a participação de familiares e amigos. Estavam presentes a mãe do escritor, Antônia, os dois irmãos, Marcelo e Maurício, além da esposa, Priscila Marvilla. "Hoje, a gente pode sentir como se ele estivesse aqui", disse ela.

Escritor e amigo de longa data de Miguel Marvilla, Marcos Tavares relembrou algumas histórias após a apresentação. "Eu não via defeitos no Miguel Marvilla. Aliás, via sim. Ele se apaixonava fácil. E a cada paixão era um novo poema", contou, bem-humorado e arrancando gargalhadas da plateia.

Projeto Multimídia

O projeto multimídia deste autor consiste na publicação de um audiobook do livro Dédalo (1996), em um perfil online na rede social TikTok. Foram feitos 36 vídeos, em que acontecem as narrações dos poemas realizadas pelo aluno de Letras - Português da UFES, Lucas Trevezzani, acompanhadas de vídeos da cidade de Vitória, no Espírito Santo.

Em anexo, um QR Code para acessar o perfil.

Referências:

VAIS, Leo. Sarau poético faz homenagem ao escritor Miguel Marvilla e emociona público. Vitória: Prefeitura de Vitória, 2021. Disponível em: <https://m.vitoria.es.gov.br/noticia/sarau-poetico-faz-homenagem-ao-escritor-miguel-marvilla-e-emociona-publico-15724>. Acesso em: 10 de julho de 2023.

WIKIPÉDIA. Miguel Marvilla. 2023. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Marvilla>. Acesso em: 10 de julho de 2023.

MARVILLA, Miguel. Fernão: Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo. Vitória: Neples, 2020. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/fernao/article/view/28428>. Acesso em: 10 de julho de 2023.

USINAGEM DE ESCRITAS. Arkeologia 3 - Miguel Marvila - Programa Entrelinhas TVE (1980). Vídeo. YouTube, Vitória, 13 de jan. de 2023. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m_mK89dwfJk&t=12s>. Acesso em: 10 de julho de 2023.

OLEARI, Don. Rubens Pontes: E Agora, do poeta Maratimba Miguel Marvilla | 9/7. Don Oleari, 2022. Disponível em <https://donoleari.com.br/e-agora/>. Acesso em: 10 de julho de 2023.

MARVILLA, Miguel. Dédalo. Flor&Cultura, 1996.

MARVILLA, Miguel. Os mortos estão no living. Flor&Cultura, 2006. 2. ed.

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